Sympathy for the Devil
- Blog Rochedo
- 15 de set.
- 3 min de leitura
por Hernani Heffner
Deixamos nosso ultimo texto envolto em mistérios. Quando o Ideal realmente abriu as portas; que filme seria esse a percorrer a Serra dos Puris; por que Conservatória ficou esquecida durante décadas, forjando nesse tempo a cidade turística atual? Da capital brasileira da seresta resta pouco hoje em dia, após um ápice recôndito e para iniciados em meados do século passado. Tendo chegado mais de uma década antes do trem, por volta de 1870, o hábito romântico de cantar para uma idealizada namorada ou redentora, indo de porta em porta, rua que sobe, rua que desce, foi se esvaindo com a transformação das residências em lojas, e com a expansão da cidade. Percorrê-la exigiria outra estratégia, ou até mesmo outro sentido para a cantoria. A tradição se resguardou no modus musical e em um pequeno trajeto. Virou monumento. Ainda se vai à Conservatória por causa de um breve momento de seresta.
Mas a cidade hoje tem diversificada rede de atrações, acompanhando a expansão hoteleira e turística. Em breve teremos a revivescência local da saturnália e mais para o final do ano a confluência de motetos, madrigais e oratórios sob a forma do encontro de corais. Música, música, música. É de fato uma cidade musical. Nos últimos tempos, menos embalada por sambas-canções do que por bolerões e roqueenrols. Explica-se, a memória afetiva e formadora, que ressurge como nostalgia e alegria de rua, chegou na geração dos anos 60. Daí a presença de Roberto Carlos na seresta oficial, da jovem guarda na praça de cima, e de conjuntos de rock nos restaurantes da cidade. Rock, rock, rock. O mais adocicado, à la Beatles, de uma maneira geral. Mas a advertência de Mick Jagger & Cia deveria ser levada em consideração: “pedra que rola não cria musgo”, o verso de Muddy Waters que inspirou o nome da banda. Ou ao menos, deveria-se incorporar um “Simpathy for the devil” ao repertório local, em se tratando de um autêntico samba, pois Keith Richards rearranjou a composição original dessa forma para a gravação de 1968.
ps.: e não esqueçam de ler a nova edição em português de O Mestre e a Margarida, de Mikhail Bulgakov, uma das inspirações diretas de Mick Jagger para a famosa canção e um dos grandes livros do século passado.

Poucos se lembram que Conservatória já foi um destino da juventude roqueira e flower power na virada para os anos 70, um pouco como Lumiar, Mauá e outros refúgios fluminenses para uma certa classe média carioca. O subsolo do antigo Hotel Conservatória, em frente à locomotiva, abrigou por um tempo as apresentações de fim de semana, afinadas ao espírito da época. Afinal rock é uma sonoridade e uma forma de tocar, um pouco como a Bossa Nova em relação novamente ao samba, elemento de base a que Conservatória se mantém fiel. A compatibilidade inclusive virou gênero de larga aceitação entre as gerações pós-90, o samba rock, que quase não circula na cidade; assim como o latin jazz – a versão mais celebrada de Sympathy adotou esta pegada, sob influência do saxofonista Ernie Watts, em sua passagem pelos Stones na virada para os 80 – e o funk – o culto a uma obra-prima como Sobrevivendo no Inferno continua restrita à periferia local, responsável ainda pela musicalidade religiosa que vem dos tempos coloniais, como as folias de reis.
Há, claro, outras formas de adoração e devoção espalhadas pela cidade. Se o exibidor Luiz Painhas não deixou seguidores na arte de projetar filmes, passando o bastão a Ivo Raposo, que recriou de forma privada o templo público carioca chamado Cine Metro-Tijuca, sua filha Cristina Painhas tornou-se emérita autora de oratórios, cuja particularidade é a ilustração floral. Sua conhecida loja fica no centro histórico da cidade, e para os que estranham a decoração visual das peças, sempre associadas ou à ausência absoluta de imagens ou à presença apenas de passagens ou personagens bíblicos, deve-se lembrar que oratórios têm origem religiosa dita “pagã” na Antiguidade, e que os oratórios brasileiros, chegados ao tempo da violenta colonização, eram signos muito mais de uma suposta conversão ao catolicismo europeu do que uma peça de oração natural. Cristãos novos e escravizados criavam e mantinham oratórios para simular essa filiação e evitar as incursões de inquisidores ou prepostos. A sua rápida disseminação no território colonial guarda essa função original, alcançando o espaço religioso tradicional com a figura do Aleijadinho, criador da linguagem artística brasileira que Cristina retoma em suas peças, fundindo-a com referências de seu tempo. Não por acaso a chamada Casa de Aleijadinho em ouro preto virou o Museu do Oratório. Uma conexão reveladora para o viajante é experienciar a coleção ouropretana e a releitura em Conservatória.
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